Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2004Crônicas

Vaca, galo, porco

Em apenas um quarteirão da Rua José Paulino, havia dois bicheiros e uma bicheira brigando pela freguesia do bairro. Um sapateiro paraguaio, o dono de uma mercearia, vermelho como ele só, e uma mistura de fofoqueira com costureira, mulher de alfaiate, que usava o ateliê do marido como fachada. E como se jogava no bicho! Não existiam a Loto, a Sena, a Supersena, a Megasena, a Loteria Estadual nem a Esportiva, que transformaram o Brasil num imenso pano verde.

Quem gostava de fazer uma “fezinha” tinha de procurar um bilhete da federal com o número ou a milhar equivalente ao bicho sonhado. Sempre difícil de achar. O jeito era correr atrás deles e apostar. Tudo na confiança: o “comprovante” era um pedaço de papel de pão cortado em forma de bloquinho. A primeira via ficava com o bicheiro e a segunda, cópia em carbono, com o jogador.

Nem só de sonho vivia o povo. Tudo era motivo para um palpite. Se a sogra aparecesse em casa, batata!, jacaré na cabeça. Algum conhecido morreu? “Descarrega” no número do túmulo. Andando pela rua, viu duas ou três vezes o mesmo número – na placa de um carro, na frente de uma casa, numa cédula de qualquer valor –, a coincidência era outra “barbada”. Deu com um gato caindo do telhado? Em vez de jogar no gato, o certo é palpitar no burro, porque gato que cai do telhado é burro. Quando acontecia um desastre de automóvel, era uma festa: os números das placas eram os mais apostados naquele dia. No dia de São Jorge, o cavalo era o mais jogado. E os banqueiros, com medo de que o santo guerreiro quebrasse a banca, pagavam menos, se desse o cavalo. E sempre dava.

Às quartas e sábados, valiam os números sorteados pela Loteria Federal, religiosamente a uma da tarde, na sede da Caixa Econômica, no Rio de Janeiro. Às segundas, terças e quintas, valia a extração da Paratodos.

Um dia, um espertinho discordou do valor do jogo feito pelo sapateiro paraguaio e foi dar queixa na extinta Delegacia de Vadiagem, Jogos e Costumes (extinta, porque hoje em dia não há mais vagabundos, jogadores nem mal-acostumados…). Resultado: o espertinho acabou preso, porque confessou que jogou no bicho. Na batida da polícia na sapataria do paraguaio, nada foi encontrado. Para variar, todo mundo jogou no burro, naquele dia. Deu. O sapateiro quase quebrou.

Como eu era “de menor”, um amigo “de maior” me fez uma fezinha no paraguaio. Sonhei que estava no ano de 4.889 (urso, nunca mais me esqueço). O amigo jogou cincão nessa milhar. Ligou à tarde e disse: “Você perdeu”. Joguei fora o papelzinho. Duas horas depois, ligou de novo: “Me enganei. Você ganhou!” O papelzinho já tinha ido pra privada: se meu pai pegasse, me matava. Jogo honesto. Mesmo sem a prova, o paraguaio me pagou: tudo virou sorvete, rodadas de pizza no Rosário, cinemas sem fim e um livro de presente para o amigo “de maior”.

Como era costume, na esquina da Orosimbo Maia com Delfino Cintra e Zé Paulino, dia sim, outro também, havia “desastre de automóvel”. A polícia, chamada para “fazer a ocorrência”, percebeu que muitos anotavam as placas e subiam a Zé Paulino. Os policiais largaram os carros batidos e foram atrás. Todo mundo “em cana” na mercearia do Pimentão, aquele vermelho como ele só. Rebelião no bairro. Até o mulherio foi “lá pra cima”, como era chamado o cadeião da Andrade Neves. O delegado foi obrigado a soltar o Pimentão. Entre o mulherio, a amante do delegado ameaçou pôr a boca no trombone sobre o caso deles, se o bicheiro não saísse.

Pregado no poste: “Pôr fermento é no bom momento” (Teresinha Ferrão)

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