Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1999Crônicas

Duas vidas por R$ 58,62

Primeiro, o folclore. Li uma notícia no nosso Correio, em que aparece o nome de um cidadão muito simpático, novamente ocupando um cargo na administração municipal, agora, na gestão do meu, do nosso, do ‘seo’ Pagano. Há mais de um quarto de século, este senhor, repito, muito simpático, atônito diante da caravela que encalhou, ao ser lançada lá na Lagoa do Taquaral, saiu-se com esta solução: “Não há problema. Vamos colocar tratores na outra margem, amarrá-los com cabos de aço à embarcação, que ela desatola” (sic!). Eu nunca vi navio atolar nem ser desatolado por tratores.

Não fosse a decepção de todos, por causa do fiasco que marcou a abertura dos festejos do Sesquicentenário da Independência em Campinas, tudo não passaria de uma piada. Mas ele falava sério, quando apareceu com aquela proposta, tão “brilhante”, quanto “engenhosa”. Falar nisso, já desencalharam (ou desatolaram) a caravela?

Tempos depois, este mesmo servidor, repito, muito simpático, decidiu fazer um pequeno museu em sua repartição. Idéia interessante, até o belo dia em que o barnabé encarregado de formar o acervo chegou ao chefe, o simpático senhor, com uma dúvida: “Como vamos exibir as máquinas que não existem mais?”. Ora, como exibir algo que não existe, ainda mais num museu?

O simpático senhor deu outra solução tirada de um baú que talvez não exista: “Arrume fotografias dessas máquinas e faça cópias fotostáticas delas, para expor”. Não parece conversa de doido? Mas aconteceu. Sei não, mas acho que foi da divulgação dessa conversa, que nasceu aquela piada da secretária que entrou triunfal na sala e anunciou ao chefe: “Vamos acabar com o arquivo morto da repartição, jogando toda aquela papelada fora”. Ele exultou: “Boa idéia, mas antes, faça xerox de tudo!”.

Mas tudo isso me passou pela cabeça ao ler reportagem sobre as conseqüências do desabamento do velho prédio que abrigava a tal de Pólo Norte, aí na Barão de Jaguara. Obra de um empresário irresponsável e de uma administração omissa. Um garoto, o Michel Del Galo, de 15 anos, saía de sua festa de formatura, e uma doméstica, a Hilda de Cássia Magalhães, ficaram sob os escombros.

Michel, o mais atingido pela negligência de quem não dá a mínima para a vida dos semelhantes, terá de operar a perna esquerda e a clavícula. Punição para quem não ligou para a vida daqueles dois jovens: multa de R$ 58,62. É quanto o Poder Municipal estipula para gestos dessa (des)natureza. É capaz de o dono daquela ratoeira armada na Barão de Jaguara considerar a multa pesada demais por atentar contra a vida de duas pessoas simples que passeavam pela Barão. (Fora aquele simpático senhor, que não tem culpa pelo preço de uma vida em Campinas, os ir-responsáveis pela tragédia não tiveram coragem de dar satisfações à comunidade que vitimaram.). Gente (?) assim não merece viver em comunidade, muito menos em Campinas.

Duro, também, é constatar que nesta nossa terra uma agressão à vida custe R$ 58,62. Da forma como Campinas está abandonada, é um risco andar por ela. A qualquer momento, alguma obra clandestina pode cair sobre nossa cabeça. Se a multa é de R$ 58,62, para que ser responsável e respeitar o próximo?

Só mais um alerta: Hilda, Michel, muito cuidado! Ainda vão culpar vocês pelo desabamento daquele prédio.

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