Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

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Coisas do Marcito que partiu

Dois fatos marcam a vida do deputado federal Márcio Moreira Alves, falecido na noite desta sexta-feira em São Paulo.

O primeiro confirma o que eu sempre dizia aos repórteres que insistiam por mais espaço para suas reportagens. O argumento é irrefutável: por que você quer escrever tanto, se Márcio Moreira Alves ganhou um prêmio Esso de reportagem com uma matéria de apenas 15 linhas. De fato: foi no fim dos anos 50. Ele cobriu um tiroteio histórico na Assembléia Legislativa das Alagoas, com deputados separados por sacos de areia. Marcito, baleado e sangrando, rabiscou as heróicas parcas linhas e passou o papel para o colega Saulo Gomes que transmitiu o texto para o “Correio da Manhã”, no Rio de Janeiro, via cabograma – outra façanha.

Um deles ligam Marcito definitivamente a Campinas. Ele foi meu colega no ‘Estadão’ durante vários anos – primeiro no exílio, como correspondente em Lisboa, depois como articulista.

Ougtro fato, vou deixar que o próprio Márcio conte:

“Ouvi o anúncio do AI-5 na casa do deputado Francisco Amaral, tomando cerveja quente e comendo sanduíches. Tal como havíamos combinado em Brasília, ele me fora buscar de manhã cedo, na sede da bela fazenda do conselheiro Antônio Prado, em Campinas, onde me acolhera a herdeira, prima longe no sangue e próxima no coração. Encontrou-me trepado em uma jaboticabeira na beira da piscina, tranqüilo na certeza de que os entrelaçamentos das relações de parentesco da classe dominante brasileira, que eu aproveitava, eram impenetrável mistério para a polícia política.

O fechamento do Congresso, surpresa que não havíamos previsto, tornava insegura até mesmo a casa de um parlamentar insuspeito de subversão, como era o bom Chico Amaral. Apesar da sua generosidade em querer manter-me asilado, ponderei os riscos que isso acarretaria para sua família e pedi que descobrisse outro lugar, onde pudesse ficar até que a vigilância nas estradas diminuísse e arrefecesse o empenho das organizações de segurança em encontrar-me.

Chico chamou um jovem dentista solteiro, militante do MDB, José Roberto Teixeira, mais conhecido como Grama. O futuro prefeito de Campinas, político cuja administração inovadora e exemplar viria a derrotar a influência de Orestes Quércia na cidade, tinha um apartamento de namoros, quarto e sala escassamente mobiliados, bem no Centro. Lá fiquei instalado durante uma semana interminável, aprendendo a longa duração do tempo de quem vive clandestino. Não podia ouvir rádio ou ligar a televisão durante o dia, para não despertar a curiosidade de algum vizinho abelhudo. Esperava as visitas do Grama com a ansiedade de quem concentra em uma única pessoa todas as possibilidades de contato com o mundo. Dele dependia para comer, para receber os jornais, para ter notícias da vigilância nas estradas, para tudo.

Grama foi ao Rio estabelecer contatos com minha família, aflita por não ter notícias de meu paradeiro. Voltou com três mil dólares e um bilhete de Antônio Callado. Os dólares eram o que minha prima Maria do Carmo Nabuco, tia por extensão, mas tão protetora como as verdadeiras, tinha no cofre. Vieram acompanhados de um ditado inglês: blood is thicker than water. O sangue é mais denso que água, dizia como se dissesse que não aprovava o meu comportamento político mas isso não a impediria de me ajudar.

O bilhete de Callado era rural. Dizia: “Compadre, andam de olho grande no bezerro que vosmicê criou. Acho bom mudar de pasto para que não acabe no matadouro.”

Texto extraído do livro 68 mudou o mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, p. 169-170.

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