Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1997Crônicas

Abismo

Misturando vergonha e indignação, o médico radiologista Luís Karpovas contou para uma platéia atônita, num evento promovido pelo Correio Popular, como pode começar ou terminar o dia de um médico brasileiro, diante da cadeira de um engraxate. “Vai graxa aí, doutor?” Sabe quanto o médico brasileiro pagará por essa engraxada em seus sapatos? O mesmo que o governo brasileiro paga a ele por uma consulta de um paciente do tal de SUS: R$ 2,00.
Isso acontece num país desfibrado, onde os políticos que o governam decidiram rasgar o belo juramento de Hipócrates e impor à nação contratos de planos de saúde, porque interessa ao governo ser conivente com o desmantelamento da saúde pública. Leia esse juramento, que todos os médicos fazem na formatura, e compare com um plano de saúde autorizado pelo governo e com a forma que as autoridades tratam o povo (cada vez mais) doente. Se seguir o juramento e tentar obedecer ao SUS, o médico morrerá abraçado ao seu paciente — ambos de fome e doentes. Se concordar com as regras de um plano de saúde, o médico será acusado de falso juramento e, sem trocadilho, será chamado de “hipócrita”, jamais de “discípulo de Hipócrates”.
Perguntei ao professor Karpovas se o estado a que chegou a saúde pública no Brasil é fruto da incompetência dos governantes ou (tão grave quanto) de algo orquestrado, planejado e deliberado para humilhar esta nação. Jamais esquecerei o olhar que ele lançou à platéia como resposta. Sua conferência foi uma lição de indignação — esse sentimento também alijado dos corações e mentes do Brasil. Estamos anestesiados, tão anestesiados que votamos nos mesmos que vão perpetrar os mesmos atos contra nós e não reagimos. Como profetizava Ruy Barbobosa, as nulidades triunfam neste grande País de pequenos governantes. Todos. Os políticos deixaram de ser figuras inúteis e tornaram-se nocivas. Cobram muito caro por um serviço que não prestam.
Veja se tudo o que está acontecendo em nosso dia a dia não parece uma sucessão de fatos tramados. Nos hospitais públicos, falta até esparadrapo, os equipamentos (que o povo comprou com os impostos que lhe são arrancados) não funcionam e médicos são obrigados a chamar a polícia para provar que não são negligentes — simplesmente não têm como trabalhar. O País tem duas grandes instituições de pesquisas — Butantan e Fiocruz –, mas precisa importar vacinas. Quando elas são aplicadas, em vez de prevenir, matam!
Saindo da área da saúde, a “trama” contra nós continua. Na segurança, os policiais são mal preparados. Quem os prepara mal? Os salários deles são baixíssimos. Quem os paga mal? A situação dos presídios é precária. Quem decide não melhorar as condições dos presídios? É muito mais fácil corromper um policial despreparado e mal pago. É muito mais fácil insuflar rebeliões em cadeias como as que temos.
A fúria de um policial que não pode voltar-se contra os verdadeiros responsáveis por sua humilhação é lançada contra os miseráveis manipulados por falsos líderes que nunca aparecem numa invasão de terras ou de terrenos urbanos. Confrontos inevitáveis, que não interessam nem à polícia nem aos manipulados, mas rendem o triunfo de falsas lideranças, que só aparecem para capitalizar a desgraça. Como abutres, que só se satisfazem de cadáveres.
E a lista de tramas não acaba: professores desprezados, escolas desabando, pontes e viadutos se deteriorando, cientistas fugindo, escândalo atrás de escândalo… Debochando de todos nós, a impunidade. Sim, porque os culpados estão soltos.
Vai graxa aí, doutor?

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