Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1997Crônicas

O lacrau de dona Marcolina

Na sala de Ciências do Colégio “Culto à Ciência”, havia, entre outros bichos, dois que chamavam muito a nossa atenção. Faziam parte do acervo do professor Pedro Calazans, da dona Albertina Dias Rosa e de dona Morita. Ninguém ousava abrir aquele armário imenso, que ficava no fundo da sala. Nenhum professor, que me lembre, o abriu. Era tenebroso; mal assombrado, às vezes. A “turma do fundão”, para aumentar mais o clima aterrador emanado daquele mausoléu de figuras mortas, balançava as pernas e o armário balançava, também.
Só para recordar, essa “turma do fundão” tinha verdadeiros anjos de comportamento em sua formação: Roberto de Andrade (o “Bugue”), Treco (Lineu Pires Véspoli: dou o nome por extenso, porque ninguém o conhece pelo apelido…), Edgard Norder, Sérgio Ewbank, Edgard Salvador Figueiredo, Paulo César Leite, Ailton Carvalho Garcia (Guerrinha), Richard James Frederigh, José Roberto Pereira (o Cecílio), Chicão Camargo, Roberto Perazzo (o Tolosa) e este santo que vos fala. Formávamos o “exército de salvação” da dona Gladis (um beijo, querida), a inspetora de alunos, depois professora de Canto, que nos agüentava, sem rancores nem mágoas. (Está certo que ela vibrava de contentamento quando batia o sinal da última aula, por se livrar de nós).
Cobras, lagartos, taturanas, morcegos, aranhas, ratos de duas cabeças e outros parentes dividiam conosco as lições de Ciências. Havia um espectador muito especial e esse é o primeiro dos dois “bichos”, que chamavam nossa atenção. Ficava em pé, fora do armário, por falta de espaço. Um esqueleto, pendurado em um cabide. Estava inteiro: cabeça, tronco, membros, costelas perfeitas e todos os dedos.
Às vezes, alguém (não era o Treco) punha um cigarro, aceso, entre os dentes daquela caveira. E o “Bugue”, já fumante inveterado, chamava dona Gladis: “Olha, lá! A caveira está fumando. Porque a senhora não leva a caveira para a diretoria? Só a gente não pode? Vai lá, mostra a caveira para o doutor Telêmaco. Vamos ver quantos dias ela pega de suspensão! A senhora conheceu o dono dessa caveira? Ele estudou aqui? Foi professor ou inspetor de alunos?”. Dona Gladis se segurava para não esganar o “Bugue”.
Da fauna peçonhenta que “vivia morta” no armário, lembro bem de um escorpião enorme, de quase 20 centímetros, capturado anos antes, atrás da casa do “seu” Alo, dono da cantina. Poucos davam bola para ele. Lembrei dele ao ler na coluna “Há 100 Anos”, do Estadão, esta notícia: “No escriptório de redacção do nosso colega Cidade de Campinas, acha-se exposto um enorme lacrau que há dias mordeu uma pupila da exma. sra. d. Marcolina de Queiroz”. Fui ao dicionário. Nunca imaginei que “lacrau” fosse escorpião.
Ao lado do “lacrau” do “Culto à Ciência”, havia o outro bicho que nos aterrava. Num vidro, mergulhado em formol, um bicho-homem. Isso mesmo, um feto! Nesse, ninguém punha a mão. Se bem que o Treco vivia insistindo: “E esse aí, dona Gladis, estudou aqui? A senhora o conheceu depois que ele cresceu?” Apesar do absurdo, na primeira vez em que ouviu a pergunta, ela ficou meio intrigada.

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