Dia dos (ainda) vivos
Amanhã é o dia dos mortos. Ou o dia em que muitos vivos vivem dos mortos e muitos “vivos” vivem dos que ainda sobrevivem.
Duas notícias correram Campinas semana passada. Uma dá conta de que a crise econômica é tão forte que até os mortos já pagam por ela, espantando dos seis cemitérios da cidade aqueles trabalhadores braçais e pequenos vendedores de estação que aproveitam a data para ganhar algo mais limpando túmulos, lustrando epitáfios, lavando mausoléus de famílias ou esquentando o comércio de flores e vasos. Esses são os vivos que vivem dos mortos, agora todos obrigados a dividir com os familiares dos extintos essas tarefas de cuidar da última morada, já que os preços da vida continuam pela hora da morte – como sempre se ouviu dizer. Tudo isso, sem falar das funerárias, floriculturas e fabricantes de caixões, sepulturas e velas, que vivem dos mortos o ano inteiro. Afinal, não passa dia sem que alguém morra.
Com todo respeito aos mortos, a outra notícia me parece tão trágica quanto a morte. Ela narra o drama da dona-de-casa Silmara dos Santos. Dona de “casa”, coitada, é força de expressão. Dona Silmara cozinha papelão picado com molho de tomate para matar a fome dos filhos pequenos, na invasão do Parque Oziel. Drama igual ao da remotíssima Biafra, que abalou o mundo no fim dos anos sessentas, e hoje se repete na nossa esquina. Esse triste parque é um acampamento de sobreviventes da política perpetrada pelos políticos que governam o Brasil.
É nesse cenário infernal, armado em Campinas, que entram no enredo dessa tragédia os “vivos” que vivem dos que ainda estão vivos. Diz a notícia que as pessoas condoídas pela situação dos sobreviventes exigem, como é natural, “entregar os mantimentos nas mãos das famílias carentes”. Diz mais, atenção: “O receio de que os mantimentos possam ser extraviados é o fator que mais intimida. Queremos ter certeza de que as pessoas vão receber as doações”.
Está estranhando? Se você quiser ajudar dona Silmara ou qualquer outro sobrevivente desse parque dos horrores não pode chegar com os mantimentos até eles. Seus gesto de generosidade, sua vontade de conhecer e auxiliar dona Silmara ou seus companheiros de infortúnio, é tolhido, porque não o deixam passar da sede da “ocupação”. É lá que se decide o destino da sua ajuda, é lá que a sua liberdade termina. Triste sina daquela gente, refém dos políticos de fora, refém dos políticos de dentro. Você não tem o direito a ajudar quem quer, eles não têm o direito nem de saber quem os ajudou. São massa de manobra na hora de votar, massa de manobra na hora de serem amparados. Nada novo nesse front de amarguras. A tática é a mesma desde as primeiras invasões: o dono do pedaço é quem decide quem merece ajuda.
É a perpetuação do estado de barbárie. E ISSO ACONTECE EM CAMPINAS! Hoje, esta é uma cidade onde restam algumas Suíças, cada vez mais cercadas de Biafras, como Olavo Setubal constatou há mais de vinte anos em São Paulo, hoje uma terra de Biafras cercadas de algumas Suíças.
É uma ajuda que não levará a nada, simples gesto de misericórdia ante a omissão dos culpados, que continuam soltos. A Prefeitura fala em mandar uma psicóloga e uma assistente social ao lugar. Em Biafra, a fome levou ao canibalismo. Cuidado, senhora psicóloga; cuidado, senhora assistente social. O tacho já pode estar no fogo, nesta cidade que volta à Idade da Pedra.
Pregado no poste: “Maluf cansa, por isso seo Pagano tirou férias”