Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2002

Dengue quase me matou

Em 1984, a jornalista Ana Lagoa foi internada com uma doença tropical dada como erradicada: a dengue hemorrágica. Ficou pele e osso. A pele descamou, envelheceu. O fígado nunca mais foi o mesmo. Seu relato:
Estávamos em 1984. Tudo começou com a dor nas costas, bem na região lombar, e uma sensação de cansaço. Eu estava trabalhando no Ibase, era dia de Corpus Cristie, mas o Betinho e Viviane, nossa secretária, resolveram ir lá para pôr umas papeladas em ordem e eu aproveitei para fazer o mesmo. No final da tarde, já sem poder me mover, fui levada para casa na certeza de que estava com pneumonia. Como não tinha recursos para ir a um médico particular, Betinho pediu que a médica que o acompanhava desse um pulo na minha casa. Susie era chefe da área de doenças infecto-contagiosas do Hospital Universitário e foi minha sorte. Ela não me deixou ficar em casa, pois teria que tirar sangue várias vezes por dia e seria muito caro. Mesmo sem saber exatamente do que se tratava, ela não hesitou em me internar.
Nunca vou me esquecer da minha entrada no Fundão, deixando meus pertences para trás, caminhando com dificuldade até a cadeira de rodas, o pano grosso do camisolão amarelo raspando minha pele que ardia. Fui radiografada, tiraram sangue e me instalaram em uma das três camas da enfermaria dos infectados.
Havia de tudo ali. Um rapaz surfista morreu de meningite. Uma senhora perdeu a perna por causa de uma infecção, uma menininha sobreviveu à difteria e eu tinha certeza de que não sairia mais dali. Fui examinada por dezenas de médicos, alunos, residentes, catedráticos. Todos os dias pela manhã um grupo deles ocupava a enfermaria para aprender, com o meu caso, como se comportava um vírus tropical desconhecido. Afinal, a dengue não existia mais.
Estávamos em 1984 e o último aedes contaminado deveria ter morrido no governo do Pereira Passos. Mas o tamanho do meu baço, do fígado, as dores, os resultados dos exames de sangue, vômitos, febre alta, a perda de peso radical, a pele sem viço, tudo levava a crer que era uma doença tropical e ninguém sabia exatamente o que fazer com ela.
Fui medicada com dipirona – porque havia problemas de plaquetas. Eu tinha sede, mas não podia tomar água. E hoje entendo porque. Os médicos tentavam manter o tênue equilíbrio entre a hidratação e o derrame de líquido. No segundo dia as fezes ficaram negras, a urina parecia chá preto. As palmas das mãos ardiam e ficavam cada vez mais vermelhas. Era o edema palmar, que os estudantes adoravam examinar como uma raridade. Muito rapidamente, a pele toda foi ficando pintada com um sarampo, depois começou a formar manchas maiores e escuras. As famosas e apavorantes manchas vermelhas que indicam a evolução da doença. Eu não sei a que intervalos, mas o carrinho de metal atravessava o corredor – a meu ver – a toda hora para tirar sangue e enviar para Manguinhos. Sob as axilas havia enormes gânglios. Os olhos se fecharam com uma espécie de conjuntivite, todas as mucosas descamaram e a pele desidratava rapidamente, perdendo a elasticidade para sempre.
Pior que isso tudo era ver a cara dos médicos, mais espantados do que eu com o que viam. Pior ainda foi o preconceito. Estávamos debutando na era da AIDS e eu tive amigos que não me visitaram porque acharam que eu estava com o HIV. Detalhe: todos os meus amigos têm curso superior e atuam socialmente. Foi, é claro, um divisor de águas. Mas nem cheguei a ter raiva. Estava mais preocupada em sobreviver.
No sexto dia, já sem febre, com a pele descamando, imensamente fraca, bateu uma fome de matar. A papa de cenoura sem sal não dava conta e este foi o sinal que a médica esperava para me dar alta. Voltei para casa sem diagnóstico e só depois que a epidemia tomou conta da cidade os médicos concordaram que eu tivera dengue. Levei meses para recuperar as forças. No primeiro dia em que sai para a rua, achei que não chegaria até a esquina. Andava devagar e tinha que segurar nas grades dos edifícios.
Não digeria o que comia. Ninguém sabia o que fazer com a sensação de tijolo que eu tinha no estômago. Por isso, inventei uma sopa que já fez bem a muita gente. Eu tirava o sumo de um bom pedaço de carne, e nesse sumo cozinhava cereais integrais, legumes e verduras fortes. Cinco minutos de pressão e depois passava tudo no liqüidificador. Esse foi meu alimento por meses, mesmo depois de ter sido acompanhada por um gastroenterologista, que avaliou os estragos no fígado. Sendo uma doença semelhante em alguns pontos à hepatite (por isso sobem as taxas de bilirrubina e de transaminase no sangue), o rescaldo é o mesmo. Fiquei pele e osso, meu fígado nunca mais foi o mesmo e minha pele até hoje parece de alguém que tem 80 anos. A alimentação, para o resto da vida, tem que ser leve e sem gordura.

O que aprendi

– os hospitais públicos são os mais bem aparelhados porque eles têm setores especializados em doenças tropicais;
– lá estão os professores das universidades e eles têm mais experiência;
– o remédio básico foi dipirona e soro em doses controladas;
– o médico que vai identificar um paciente precisa examinar o fígado e o baço;
– se a pessoa tiver radiografias ou ultrassonografias desses órgãos,anteriores à doença, é bom levar para
o médico comparar;
– pessoas fracas, mal alimentadas e estressadas têm
mais chances de ficar doente e desenvolver a forma
mais grave da doença;
– dias depois da minha dengue muitas pessoas caíram
doentes, principalmente em Botafogo, onde havia um
enorme depósito de pneus, na pedreira da rua
Assunção.
– Toda dengue pode gerar o quadro hemorrágico;
– Eu estou imunizada apenas para aquele vírus daquele
ano, se são quatro, tenho mais três roletas russas
para jogar;
– Todo mosquito é suspeito.
– Só cloro mata a larva.
– Lugar de bromélia é no meio da Mata Atlântica.
– Eu me tornei uma fonte de dengue. Se um mosquito
são me picar, passará o meu virus para outra pessoa.
– Não posso doar sangue.
– Tenho alterações nas hemácias, às vezes com
macrocitose, outras com diminuição das células e
ninguém sabe por que.
– Todos nós somos responsáveis, pois passamos por
dezenas de focos ou potenciais focos e não ligamos
para o serviço de limpeza. No máximo reclamamos do
desleixo das autoridades sanitárias e esquecemos.
– A midia ajudou a criar o mito de que a dengue é uma
febre de verão e que algumas delas eram
hemorrágicas.
– Também existe o mito de que dengue é coisa de
pobre.
– Os médicos muitas vezes deram entrevistas
minimizando o problema.
– A cidade continuou acumulando criadouros de
mosquitos.

Dezoito anos depois da minha dengue, perdi uma
amiga com o mesmo mal. Com os mesmos sintomas. E
ela morava na Zona Sul, numa belíssima área
residencial. Tinha plano de saúde e foi atendida em
hospital privado.
Mas ela não teve a sorte de encontrar um especialista
como os que me examinaram no Fundão. Foi três
vezes ao hospital, em um só dia, para morrer no início
da noite. Os médicos – nas duas primeiras visitas, já
com as manchas crescendo e as dores aumentando – a
mandaram de volta para casa. Na terceira vez, ela teve
a primeira parada cardíaca, ainda a caminho de outro
hospital, e não sobreviveu à segunda.
O imenso despreparo dos médicos fica evidente no
atestado de óbito – infarto. Não há a menor referência
à dengue. A família foi informada de que a dengue
mascarara o infarto e eles não perceberam que ela
estava tendo um ataque de coração. Ora, é básico: se
o sangue se liquefaz, há o choque sistêmico e o
infarto. É só digitar um buscador qualquer da web e
pedir – DENGUE. Está tudo lá. A causa mortis é
dengue e não infarto.
Já pensaram em quantos atestados de óbito foram
emitidos nos últimos dois meses dando como causa
mortis esse tal de infarto, quando na verdade ele pode
ter sido apenas o final da tragédia medieval que nos
assola? Assumir que era dengue e que não a tratam
com seriedade poria em risco a grande sabedoria da
medicina anglo-saxã urbana industrial que cuida de
nós. Quando na verdade somos semi-rurais,
semi-agrários seres negros e morenos dos trópicos, à
mercê de mazelas do subdesenvolvimento e doenças
extintas para os povos do Hemisfério Norte.
No sábado, antes de me despedir da amiga, descobri
que todos os funcionários do meu prédio tiveram ou
têm a febre. E que, no meu bairro, Ipanema, dezenas
de prédios abrigam bromélias, pneus (é só ver na
esquina da Farme de Amoedo com Nascimento Silva),
laguinhos e pratinhos, piscinas em coberturas nunca
fiscalizadas, bueiros pluviais sem escoamento – os
berçários do aedes.
A Comlurb foi avisada, fez o seu trabalho. Mas no dia
seguinte outras latas, vasos e laguinhos voltam a
estar lá, o que me faz temer por uma guerra perdida
para a IGNORÂNCIA.
Na rua Barão da Torre há um síndico que já foi
advertido, mas garante que não vai tirar as bromélias
cercadas de nuvens de mosquitos. Ele argumenta: é
tudo mentira. A medicina e a midia criaram o mito da
febrinha de verão chamada dengue. Tem até o xiste –
dengosa. A população não acredita que possa morrer
ou ter seqüelas para sempre por causa de um
mosquito.
No hospital, enquanto aguardávamos o atestado de
óbito da minha amiga, vendedores de flores e adereços
cercavam os parentes. No pátio que separa a portaria
da sala de velório, plantas com pratos ao relento. No
balcão da recepção, mais pratinhos com água.
No Crematório do Caju, depois de atravessarmos as
alamedas – verdadeiros paraísos de mosquitos – outra
cena medieval. Uma edificação sem refrigeração,
escura, à beira de um charco, sem bebedouros ou
janelas. Todas as flores do caixão murchas. Um fio de
sangue escuro escapando da boca. Mosquitos por
toda parte. No rosto das pessoas, dor, medo. Não
pude deixar de pensar nas cenas de filmes sobre
pestes medievais.
Mas as pessoas continuam sendo mandadas para
casa, mesmo quando têm manchas vermelhas na pele
e nem param em pé.
Não existe morte bonita. Toda morte é inevitável. Mas
muitas podem ser adiadas. A morte causada pela
dengue é uma das mais feias. Não deveria mais existir
entre nós.
Temos que denunciar todos os prováveis focos do
mosquito e abolir todos os costumes que possam
gerar berçários para os aedes. E investir na educação e
nos serviços urbanos básicos.
A Comlurb está fazendo um belo trabalho. Mas sozinha
não vai dar conta. *Ana Lagoa é jornalista carioca

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