Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2005Crônicas

Para espantar meganha

Lá em Jaú, os bares da periferia estão proibidos de vender bebidas alcoólicas para consumo imediato; fazer shows com música ao vivo; ter mesas de sinuca e de ficar abertos após as 20 horas. Por que só os da periferia? Está certo, é um cenário nada recomendável, nestes dias de hoje. Então, ficamos assim: o povo da periferia está convidado a ir aos bares dos bairros chiques. Quero só ver se o preconceito vai deixar.

Em Campinas de antanho, o cenário daqueles dois velhinhos, bem velhinhos, era a Rua José Paulino, entre o Centro de Saúde e a Barão de Itapura, e a Rua Jorge Miranda até o Mercadão. Era aí que seo Felício e o Lau vendiam verduras que traziam numa cestinha pendurada no braço.

Lau, diziam, tinha mais de 100 anos. Os dois sempre de chapéu. Conversavam muito entre eles, mas quando chegava alguém, silêncio. Nunca se descobriu o que falavam. Felício era bugrino até não poder mais. Lau, talvez por ter visto nascer Ponte e Guarani e todos os outros, do Jabaquara ao Corinthians, torcia para todos – ou para ninguém. Nunca confessou em que time jogava seu forte coração.

Numa noite, Mauro Higa fechou mais cedo a mercearia do pai, seo Kana, honrado velho japonês, para ver um amistoso da Ponte Preta com o Taubaté, no campo da Ponte. Felício indignou-se: “Deixar de lado uma partida de dominó no balcão para ver jogo da Ponte!? Isso não se faz!”. Ponte e Taubaté estavam na Segunda Divisão, a Macaca amargando a praga da mãe do Pitico. A iluminação daquilo que os ponte-pretanos chamam de “Majestoso” era horrível. Nem a boate El Cairo era tão escura – tanto que o pianista Cataldo Bove corrigia textos que iam para a oficina do ‘Jornal de Campinas’ no teclado do piano. Ou nas coxas.

Ponte e Taubaté fizeram um jogo tão ruim que os dois deviam perder, mas foi zero a zero. E a torcida aporrinhava sua senhoria: “É hora do lanche, que hora tão feliz, queremos a rosquinha do juiz…”. Nem por isso, o biscoito São Luiz acabou.

Dois bugrinos revoltados com o time do Taubaté voltaram pra casa. (A Ponte não tinha direito nem de empatar um amistoso – só perder.). À noite, apareciam no bar seo Felício e o Lau, para bater papo, contar o passado e jogar dominó. O Lau só não ia pra casa mais cedo, quando acontecia festinha de aniversário de criança, por ali. A molecada adorava o Lau. Era o convidado mais ilustre. Ninguém sabia onde ele morava, mas quando era visto na rua, já vinha o convite. Eram o começo e o fim de vidas se encontrando. Bonito.

Numa noite, dois meganhas da velha Força Pública desceram da viatura e entraram no bar do Kana Higa, revólver na cinta cassetete na mão. Valentes, contra um velhinho, um adolescente e um rapaz de 19 anos, filho de japoneses e que trabalhava de sol a sol no armazém do pai: “Dominó, não! Jogo nenhum! Parem com isso, se não o ‘japa’ e o velho vão lá pra cima e o moleque para o abrigo de menores.”. Era perigoso: naquele tempo havia as delegacias de Jogos e Costumes e de Vadiagem.

Dali em diante, dominó só com porta fechada. A luz acesa, vazando pela soleira, atraiu os guardas de novo. Sorte que Kadão estava lá. Quando Mauro abriu a porta, os meganhas se afastaram: Kadão tinha tomado outra sodinha mais duas paçoquinhas. Não há lei que resista ao efeito perfumado dessa mistura.

Pregado no poste: “A Delegacia de Vadiagem foi extinta por lei de algum político?”

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