Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2002Crônicas

Farsa verde

Uma carta corre de mão em mão, estampada em panfletos distribuídos por  ecologistas e “ecochatos” do mundo inteiro. É linda. Narra a mensagem de um índio, um certo cacique Seattle, da tribo Duwamish, enviada, às vezes, ao ex-presidente dos Estados Unidos Millard Fillmore, em 1852, às vezes ao ex-presidente Franklin Pierce, em 1855. Há duas verdades nesse documento: o cacique existiu e a carta, também. Mas o conteúdo que circula é falso. O presidente americano a quem se dirige o índio não foi Millard Fillmore; era Franklin Pierce, sim, mas ela foi redigida em 1854.

Hoje, 144 anos depois, Seattle dá nome à capital do Estado de Washington, no extremo noroeste dos EUA, fronteira com o Canadá, no Pacífico, cidade-sede da poderosa Boeing e da mais avançada tecnologia de computadores do mundo. Homenagem.

Se o cacique soubesse! Seu nome, em vão, assina textos enormes, às vezes simples excertos, em livros escolares, antologias de ecologias, em placas coladas em blocos de granitos em saguões de prédios públicos ou não. Quem lê se sensibiliza na hora com a forma, a um tempo doce e indignada, com que Seattle defende a natureza, sua terra, seus rios, seus animais, sua gente, até seu céu. Comove.  É a mais convincente das bandeiras.

Só que Seattle não escreveu nada daquilo. A denúncia, comprovada, da fraude está na Internet, para quem quiser esclarecer ecochatos. Estes, claro, vão duvidar, porque a verdade lhes tira um poder de sedução e argumentação autênticos, que nunca tiveram. Gostam de enganar e de serem enganados, quando fazem da defesa do meio ambiente palanque eleitoral. Só.

Na falsa versão, até Deus muda de mãos. Onde o cacique “diz” ao presidente “O seu Deus é o nosso Deus”, ele disse, de verdade, “O seu Deus não é o nosso Deus”. Seattle e o presidente falavam em troca, compra e venda de terras, não em perdas ecológicas, propriamente.

O texto original da carta do cacique foi publicado na edição de 29 de Outubro de 1887, do jornal Seattle Sunday Star. A carta autêntica foi ditada pelo índio a um colono pioneiro daquela região, Henry Smith, que a traduziu do dialeto duwamish para o inglês.

Depois da publicação no jornal, a carta foi sendo vilipendiada ao sabor dos acontecimentos e interesses. Diz o documento na Internet que os dois últimos parágrafos ganharam adendos, de um certo A. C. Ballard, etnólogo e historiador. O adendo foi feito para que “os brancos, e também muitos índios, acreditassem que os nativos americanos seriam inevitavelmente extintos”.

O mesmo documento que estuda a obra do cacique Seattle, à disposição na Internet, faz outro alerta: um roteirista de Hollywood, Ted Perry, é o “autor” dessa forma romântica e docemente indignada que corre o mundo. Adverte que até o ex-presidente americano George Bush caiu na armadilha e citou esse texto falso em discurso. Ainda em fevereiro, o deputado federal João Mellão Neto também foi enganado e publicou um texto no Estadão, enaltecendo a carta, errando ainda a data e o destinatário. Virou o “samba do índio doido”.

Quem quiser ter acesso ao “Texto autêntico da carta do índio Seattle ao presidente dos Estados Unidos” é só entrar no endereço: “http://www.synpatic.bc.ca/ejournal/smith.htm”. Outro caminho, mais simples, é o site ‘Yahoo!’. Clique no espaço da pesquisa: “Roberta Frye”. Bom divertimento e não deixe que o enganem mais.

14/mai/99

 

As versões do Chefe Seattle

“O Presidente em Washington manda dizer que deseja

comprar nossa terra. Mas, como alguém pode comprar ou

vender o céu? A terra? A idéia nos é estranha”. Assim

começa a versão mais conhecida do Discurso do Chefe

Seattle, proferido em 1854, como resposta a uma proposta

do governo norte-americano – basicamente, adquirir as terras

da tribo de Seattle e remover os índios para uma reserva. A

partir dos anos 70 deste século, o discurso de Seattle virou

um fenômeno pop, com direito a constar em camisetas e

adesivos; tornou-se uma bandeira, um manifesto, em certos

círculos ambientalistas. O texto foi citado pela ONU, por

autoridades de todo o mundo, até pelo mitólogo Joseph

Campbell. O fato, porém, é que o discurso original do velho

chefe não tinha nada a ver com a mãe-Terra ou com o meio

ambiente.

 

Como nota uma edição recente da revista Skeptical Inquirer,

o texto virou um argumento em favor da visão poética da

natureza que os povos indígenas teriam, oposta à visão fria

e mercantilista do homem branco.

 

O fato, no entanto, é que a versão “ecológica” do discurso

de Seattle – em outro trecho, o texto diz: “O homem não

teceu a trama da vida; ele é apenas mais um de seus fios.

O que ele faz à trama, faz a si mesmo” – é uma obra de

ficção, criada, em 1970, pelo roteirista Ted Perry, para um

filme – este sim, ecológico – produzido por uma Igreja

Batista.

 

Uma análise do texto de Perry revela várias pistas de que

aquela não seria a transcrição da fala original de um índio. A

própria menção a uma “trama da vida”, por exemplo, lembra

mais a mitologia grega, onde o destino dos homens era

tecido em um tear, do que uma metáfora indígena.

 

Mas, então, o que disse o chefe Seattle em seu discurso?

É possível que nunca saibamos, ao certo. O texto mais

próximo de uma transcrição fiel da fala do chefe foi

construída a partir de notas esparsas, tomadas por um certo

Dr. Henry Smith. Smith tomou nota do que Seattle dizia em

sua língua nativa, traduziu suas notas para o inglês e

fundiu-as na forma de um texto coerente. A versão de Smith

não fala em ecologia, mas é um protesto emocionante, pelo

sentimento de frustração e ira contida, contra a extinção

dos povos indígenas.

 

Nessa versão, o chefe Seattle abre sua fala dizendo: “O

chefe branco diz que o Grande Chefe em Washington envia

saudações, amizade e boa-vontade. Isto é muito gentil, já

que ele não precisa que retribuamos sua amizade. Seu povo

é grande. Meu povo é pequeno”.

 

Mais adiante – onde, no texto de Perry, o índio diz que “seu

Deus é nosso Deus” -, a versão de Smith mostra um chefe

Seattle totalmente diferente: “Seu Deus não é nosso Deus!

Ele ama o seu povo, e odeia o nosso! Ele abandona Seus

filhos de pele vermelha, se é que estes são mesmo Seus

filhos”. Não é à toa que, escrevendo para uma igreja, Perry

achasse melhor fazer alguns ajustes aqui.

 

E onde, afinal, o chefe Seattle fala sobre a terra, seu valor,

sua poesia? Bem, no texto original ele não parece estranhar

a idéia de vender terras. E não demonstra grande

resistência à idéia de ir para uma reserva: “Pouco importa

onde passaremos o restante de nossos dias. Eles não

serão muitos. A noite do índio promete ser escura.

Nenhuma estrela de esperança se ergue sobre o horizonte”.

 

Mas, sim, ele fala de um tipo especial de terra – uma fração

sagrada de solo: “Iremos considerar a sua proposta (…) Se

a aceitarmos, aqui e agora imponho uma condição: não nos

será negado o privilégio de, sem sermos molestados,

visitarmos, a qualquer momento, as tumbas de nossos

ancestrais, amigos, crianças. Cada pedaço deste solo é

sagrado para meu povo”.

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