Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2002

Vida de calouro

 

Há dez anos, eles eram 3.400. Hoje, passam de vinte mil os calouros e veteranos que vêm de fora para estudar em Campinas e buscam um canto para morar. Já foi mais difícil. No tempo da ditadura, os síndicos dos edifícios não queriam nem ouvir em falar — para eles, “república” era sinônimo de célula do Partidão. A meninada sofria, também, com o preconceito e com o lendário provincianismo e orgulho dos campineiros: “Você é de Campinas?” Como era difícil se enturmar!
Para intimidar ainda mais, um investigador de polícia, tipo troglodita, fazia conferências em algumas salas de aula – a contive só Deus sabe de quem – armado de um pé de maconha e de uma ameaça: “Se eu pegar uma planta como essa no quintal ou no jardim de uma república ou um comunista morando ali, eu acabo com todo mundo lá dentro.”
Mesmo assim, a cidade teve repúblicas famosas. Uma delas, a “Toca do Brasa”, com cartaz e tudo na janela, ilustrado com a figura do diabo vermelho segurando um tridente. Regente Feijó quase esquina da Delfino Cintra, térreo do Edifício Telmita. Abrigou várias gerações de estudantes. Ainda existe? Algum morador dali ficou em Campinas depois de formado?
Outra era um pensionato de moças de bem, que vinham do Interior. Casarão bonito, da Benjamin Constant com Sacramento. A teatróloga Leilah Asunção, a editora Charlote Sedigh e aquela santa que mora aqui em casa viveram ali. Tempos da Puccamp reduto exclusivo dos universitários da cidade. Havia ainda um pensionato chique na Culto à Ciência, o Instituto Complementar São José, mantido por religiosas, também só para elas.
Para os pobres, a sobreloja de um prédio na General Osório, perto do Palácio da Justiça: vinte camas, um banheiro, três prateleiras e dois armários. Já pensou?
Duas repúblicas folclóricas. No edifício Itaguaçu, o primeiro prédio redondo de Campinas, o jornalista Edmilson Siqueira assistiu ao seguinte diálogo entre um casal e um porteiro que proibia a entrada dos dois em 1900 e bolinha:
— Os senhores não podem entrar, pelo amor de Deus! Não são casados!
— Homem com bicha pode?
— Nãããooo!
— Lésbica pode?
— Pelo amor de Deus!
— E como o senhor deixa entrar homem com homem e mulher com mulher?
Na Francisco Glicério, ali perto da Puccamp, o delegado chamou os estudantes para uma “conversinha”, por causa do nome da república, “Palhoça das Virgens”:
— Vocês mudem já o nome daquela espelunca, se não vão pensar que lá são todos bichas. Já chega a fama da cidade!
Pregado no poste: “A natureza não erra. Errar é urbano…”

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