Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1998Crônicas

Um desejo chamado bonde

Pronto. Acho que agora o Tennessee Williams não vai ficar bravo com o título.

Ontem, nós íamos conversar sobre a restauração da garagem do bondão verde de Sousas, lá em Joaquim Egydio, mas a história da maria-mole do Furazóio atropelou. Pois é, querem reconstruir parte daquele cenário. Seo Pagano, não vai adiantar nada. Garagem de bonde não tem graça nenhuma. O charme do bonde é o bonde correndo pelos trilhos, cheio de gente, uma verdadeira casa ambulante, lotada de alegria. Andar de bonde em Campinas era uma farra. Eles eram o que havia de mais gostoso na cidade.

Ninguém tem más lembranças dos bondes. Você, que viveu aqui quando Campinas era uma feliz cidade, procure se lembrar. Existe na sua memória alguém com a cara triste dentro do bonde?  Era uma viagem muito melhor do que certas “viagens” de hoje. “Veja ilustre passageiro, que belo tipo faceiro o senhor tem ao seu lado. No entanto, acredite, quase morreu de bronquite, o coitado. Salvou-o o rum Creosotado”. Esse ícone da propaganda era exclusivo dos bondes e até hoje é exibido nas escolas de publicidade do Brasil inteiro.

Os bondes eram como “coração de mãe”. Não deixavam ninguém no ponto. “Cinco lugares em cada banco”, mas quando não cabia mais, viajava-se em pé entre eles: a rapaziada adorava ir em pé ali, principalmente se fosse para dar lugar a alguma garota. Davam tudo para ficar, com aquela cara de anjo, roçando os joelhos nos joelhos dela. Santa inocência! Ainda sobravam os estribos – era proibido, mas… – e a “cozinha”, lá nos fundos, no lado oposto ao do motorneiro.

Motorneiro era o “motorista” do bonde. Condutor era o cobrador. Na verdade, era o cobrador quem conduzia o carro. Sabe por quê? O motorneiro só tocava o bonde depois que o cobrador tocava o sino. Daí a marchinha de Carnaval: “Seu condutor, din, din; seu condutor, din din; pára o bonde pra descer o meu amor.”

Até quem não viajava se divertia. Onde havia uma rampa, era só espalhar um pouquinho de areia, esfregar sabão ou colocar uma tampinha de guaraná nos trilhos. O motorneiro ficava uma “arara”. O bonde não subia de jeito nenhum. Espalhar traque e estalo de salão, também. Um “tiroteio” saudava a passagem do bonde.

Era seguro. Devagar e sempre. Imagine, que os cobradores andavam pelo estribo cobrando a passagem de cada um, com as cédulas dobradas entre os dedos. Acho que nuca um deles foi assaltado. Eram educadíssimos, cordiais. Quando um homem não se mexia para dar lugar a uma mulher, o cobrador anunciava: “Como é cavalheiro? Não vai se mexer?”. Quando ele deixava a senhora se sentar, o cobrador exultava: “Parabéns! Palmas para o cavalheiro!” E a gente aplaudia… Ajudavam as pessoas a descer, às vezes até levavam os pacotes até a porta da casa das idosas que moravam pertinho do ponto. Todo mundo esperava, sem bronquear.

Seo Pagano, é por isso que eu digo que não vai dar certo. Tente com a estatal do petróleo, que vai ajudar na restauração da garagem, se ela recupera pelo menos a linha de Sousas a Joaquim Egydio. Ficará como exemplo de um tempo e de uma gentileza entre as pessoas que Campinas – e as grandes cidades – perdeu. Infelizmente, não há mais lugar para os bondes. Eles são de uma época em que as pessoas tinham alma, alegria de viver.

PS: Dedico esta crônica ao seo Vignatti, cobrador de bonde em Campinas, uma das pessoas mais felizes que conheci.

Pregado no poste: “Quem perdeu a história do bonde perdeu o bonde da história.”

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