Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1998Crônicas

Um anjo chamado Maria

No Correio do dia 30, que só chegou ontem, uma notícia aterradora, mostrando nas mãos de quem estão as vidas de cidadãos vítimas de empresas estatais. Notícia curta: “Dona de casa impede descarrilamento de trem. Um buraco de seis metros sob os trilhos da linha da Fepasa poderia ter causado uma tragédia ontem de manhã em Campinas, não fosse a atitude da dona de casa Maria Almegina, que mora na Rua Afonso Penna, no bairro Ponte Preta. Percebendo o risco de descarrilamento, ela acionou a Defesa Civil, que solicitou a imediata interceptação do trem que vinha de São Paulo, transportando cerca de 120 passageiros rumo ao interior do Estado. Os mourões de sustentação dos trilhos ficaram suspensos na linha por quase dois metros de extensão”.

Até aí, acidentes acontecem. Agora, vêm o deboche e o desprezo da estatal com a vida humana. “A dona de casa contou que ela e os vizinhos notaram o problema no dia de Natal e, apesar de diversos telefonemas à Fepasa, a empresa não providenciou o conserto até ser acionada pela Defesa Civil”. A omissão da Fepasa quase mata 120 pessoas. A consciência e a iniciativa da dona Maria, mulher que vale mais do que toda a Fepasa junta, salvaram 120 vidas. A negligência homicida da estatal vai ficar por isso mesmo. É capaz que escrevam para o jornal dizendo que “foi aberto rigoroso inquérito para apurar as responsabilidades”.

Quando irresponsáveis prometem apurar irresponsabilidades, quem perde é o povo.

Enquanto isso, dona Maria Almegina continuará ganhando sua vida honestamente, pagando seus impostos para sustentar uma estatal que não se importa com a vida dos passageiros, que transporta como gado em vagões sujos, nem com a vida dos moradores que vivem ameaçados por ela ao longo da linha.

Aquelas 120 vidas que dona Maria salvou talvez nem saibam de sua existência de “anjo da guarda”, campineira digna que cumpriu seu papel de cidadã e foi ignorada e humilhada por gentinha de uma empresa que saiu dos trilhos por decisão de governantes pequenos.                                Aqueles 120 passageiros chegaram cada um a seu destino, sem saber que suas vidas não foram interrompidas em Campinas por obra e graça de uma brava campineira. Se entraram em 1998 felizes, sãos e salvos junto de suas famílias, devem tudo a essa mulher, que lutou pela segurança deles, quando poderia dar de ombros — afinal, ela não é funcionária da Fepasa, muito menos fiscal de linha. Ela poderia, também, estar saboreando as festas de fim de ano com sua família. Mas largou tudo e, mesmo tratada com indiferença pelos irresponsáveis da estatal, dona Maria insistiu, bateu o pé e, finalmente, encontrou gente capaz de dar atenção a ela.

Maria Almegina, uma brasileira, mostrou quanto vale uma campineira. Essa nossa dona Maria, sim, merece o título de cidadã emérita de Campinas. Uma estátua em praça pública, sim. Que ela não espere essas homenagens, merecidas, das autoridades. O reconhecimento público de seu gesto nem deve partir dessa turma. Caso aconteçam, é um favor que eles nem apareçam, para não sujar a festa. Enquanto o Estado que ela ajuda a sustentar ameaça a vida das pessoas, dona Maria salva.

PS: Os que tentaram deixar que 120 pessoas morressem continuarão soltos. Cuidado.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *