Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2002

Tem celulóide?

Quase todos eles tinham o menor negócio do mundo. Eram japoneses, principalmente, mas havia italianos, espanhóis, alemães, brasileiros também. Nenhum suíço, embora se dedicassem a consertar relógios. Trabalho muito delicado, de artista, esse dos que faziam os Omega, Lanco, Movado, Roskof, Patek Phillip, Cyma e outros, de bolso e de pulso, voltar a reger o tempo e a vida de seus donos. Nem todos eram proprietários de relojoarias, porque ser dono é uma coisa, saber fazer é outra. Alguns trabalhavam nos fundos das relojoarias, outros ganhavam o pão solitários, sempre em cubículos de um metro por um, com uma lente presa aos olhos para desvendar mecanismos encrencados, contar rubis, desenrolar “cabelos”, atarraxar a “coroa” ou engrenar a corda.
Enquanto salvavam aquelas jóias de família, objetos de estimação, presentes da namorada ou herança do avô, eram a mina de ouro dos garotos que tiveram infância e batiam perna pela cidade atrás deles, em busca de uma preciosidade: o celulóide. Nossos filhos não sabem o que é isso. Mas você sabe. Com celulóide se jogavam partidas de botão no chão da varanda, na mesa envernizada da sala de jantar ou na de fórmica, que ficava lá na copa ou na cozinha. Todos os grandes craques do futebol se exibiram nos lugares mais inesperados da casa de cada um de nós. Valiam mais do que qualquer fortuna, porque jamais eram negociados.
De celulóide era a tampa dos relógios de antanho, que protegia o mostrador e os ponteiros, porque poucos eram à prova d’agua ou de choque. E como jogavam! Os mais achatados atuavam no ataque, para pegar a bolinha por baixo e encobrir o goleiro. Os mais altos iam para a defesa. O goleiro era uma caixa de fósforos, recheada com chumbo derretido, para ficar mais pesado e agüentar qualquer “chute”. O gol era de arame, “vestido” de filó; a bolinha, redondinha ou achatada, mas sempre de cortiça.
Os celulóides eram pintados de esmalte da “mãe da gente”, imitando a cor da camisa do time do coração de cada um, com números recortados de pequenos calendários, como as camisas de verdade dos esquadrões daquele tempo. Minha mãe nunca achou esmalte verde para o meu time do Guarani. O jeito era colar durex daquela cor para deixar vistoso um time de São Dimas; Ferrari, Ditinho e Diogo. Valter (Macalé) e Eraldo. Dorival, Ilton, Cabrita, Benê e Oswaldo. Nossa! Meu filho, jamais verás um Bugre como esse!
O Carlos Otranto me socorre e fala de três relojoeiros que guardavam para as crianças esses craques de celulóide: o Venério Manzini, na Rua da Conceição; o Duda, na General Osório quase chegando à Alvares Machado, e um senhor muito generoso, perto do Mercadão. O Carlos se lembra de um campeonato trágico que sua república de estudantes de Medicina disputou com outros 14 colegas em Curitiba. De Campinas, eram ele, o Antônio Carlos Leitão de Campos Castro e o Newton Luís Rocha. O time do Carlos era a Ferroviária (tinha um timão naquele tempo) e o do Antônio Carlos, o Tage, a Prudentina, só para caçoar dos pontepretanos, porque ela impediu que a “Nega Véia” subisse para a especial, em 1961… O campeão foi o aluno Antônio Carlos Maruccig, palmeirense de Lins. Estava no quinto ano. Começou a sentir-se mal em pleno torneio. Morreu. Leucemia. Hoje, quase 40 anos depois, ninguém se esquece dos adversários dos jogos de botão. Eu que o diga: o Sérgio Belletti era imbatível!
Agora não há mais relojoeiros como aqueles, nem craques de celulóide, nem jogadores, muito menos relógios que eram jóias. Perderam até os ponteiros. São todos quadrados, como os jogadores de hoje.
Pregado no poste: “Políticos brasileiros vão a Belgrado. Avise a Otan!”.

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