Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2003Crônicas

Quem sabe

Esse lugar onde será construída a nova Câmara Municipal (pra quê?) viveu histórias sinistras e misteriosas. Foi perto dali que ‘Maneco Músico’ (Manuel José Gomes) matou a tiros e punhaladas sua mulher Fabiana Jaguary Cardoso, mãe de Carlos Gomes, em 1844, quando o maestro tinha oito anos. E foi ali que existiu até meados dos anos 60 o Grupo Escolar Municipal “Corrêa de Mello” e o parque infantil do extinto Departamento de Ensino e Difusão Cultural, da ex-gloriosa Prefeitura de Campinas.

A escola e o parque homenageavam o farmacêutico e botânico Joaquim Corrêa de Mello. Usando o nitrato de prata de sua botica, permitiu ao amigo Hercules Florence chegar, pioneiro, à fotografia.

Gente maravilhosa lecionou naquela escola: Clélia Pires Barbosa Goulart (da primeira professora a gente nunca se esquece…), Nair de Godoy, Ofélia, Alda e a mestra Afonsina Afonso Ferreira. O diretor era João d’Oliveira Toledo, repórter do Estadão em Campinas. As professoras do parque? Estão todas aqui n’alma: Dirce Nascimento, Lindomar, Teresinha, Edith, Mazé… Até alguns funcionários: Alcindo, Alzira, Mercedes, Cida, a merendeira, e seo Antônio, o jardineiro, que ensinava a criançada a fazer e a cuidar da horta. Acho que sei até hoje.

E aqui começa outro mistério. Pelas redondezas do Mercadão vivia Hilda. Sete ou oito anos, sozinha no mundo, rebelde. Bonita, vivíssima, um redemoinho na testa a dividir-lhe a franja. Bem que as professoras do parque, às vezes, conseguiam levá-la para brincar, tomar lanche. Mas ela fugia. Vestia-se com trapos jogados na porta das Casas Pernambucanas e comia do que lhe davam, com pena, donos de armazéns. “Vim de Barretos!” E sumia pelas ruas dali. Todos a conheciam, ninguém conseguia cativá-la.

Uns vinte anos depois, em meio a uma reportagem no Jardim Itatinga… Até pedi para o motorista do jornal passar de novo na frente de uma casa. No jardim, atrás do muro, com uma criança pequena no colo… Reconheci pela franja, embora aquele olhar ainda fosse atento. Preferi deixá-la pra lá.

Mais vinte anos, em Mato Grosso do Sul, numa grande loja de artesanato regional, precisei pagar a conta com cheque. A balconista pediu licença e falou em voz alta: “Dona Hilda, esse senhor quer pagar com cheque de Ribeirão Preto. Pode?”. Por trás da prateleira, deu para ouvir “Tudo bem.”. E deu para ver… a franja.

Acho que já contei essa história incrível aqui, mas desde que derrubaram o “Corrêa de Mello”, quando falam desse lugar, o que mexe comigo é a escola, o parque, os cientistas e a Hilda. Duvido que a Câmara deixará lembranças melhores a quem quer que seja.

Pregado no poste: “Com o casamento de homossexuais também fica proibido cobiçar o ‘homem’ do próximo?”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *