Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2002Crônicas

Quanto vale uma oração

Não se assuste a gente que hoje mora lá para as bandas do Furazóio. Lá, bem para lá do outro lado da Lagoa do Taquaral. Nem de longe, quem está lá agora descende de quem esteve quando tudo se deu, tem pra mais de meio século. Era um lugar ermo, com uma orada verde-e-rosa, posto que o padre de antanho trazia a Mangueira (e a Gigi) no coração.

Uma corrutela assim era o berço do bairro. E a orada dividia com o boteco da Maria-mole, o ponto de encontro daquele descampado. Maria-mole, porque o desafio da molecada da Campinas de gente-bem era descer no fim da linha do bonde 4, cruzar ou contornar a lagoa, dependendo da coragem ou de como seu mestre mandou, comprar a maria-mole e voltar com ela, como prova de que “esteve lá”. Coragem e fama que se espalhavam por todas as escolas.

Mas foi àquela orada que a cinderela do bairro, Hermínia, chegou para rezar, como fazia todo fim de tarde. Vestido de chita rodado e estampado, mangas bufantes, cintura fina ornada de fitas vermelhas. Descalça no chão batido, velas, muitas velas, iluminavam o recinto.

Atrás de Hermínia foram se assentando os marmanjos (todos com cara de anjo, mas nenhum arcanjo), acometidos de súbita devoção católica, que coincidiu com o repentino hábito religioso da garota. Todos pretendentes.

Bem pela porta do lado, trilhando a réstia da luz do sol, uma barata também se perfilou em direção de frente para o altar.  Todos viram e nenhum dos candidatos a anjo da guarda da mocinha se mexeu. E a bicha entrou pelos joelhos da pretendida. Ela estrebuchava, se contorcia, mas em vez de berrar, rezava em voz alta, delirando palavras e versos: “Ave-Maria, que estais no Céu/ Cheia de graça/ Santificado seja o vosso nome, criador do Céu e da terra/ Venha a nós o Vosso reino/ Bendito é o fruto do vosso ventre/ Desceu à mansão dos mortos/ Não nos deixeis cair em tentação/ Para que sejamos dignos da promessa de Cristo…”

Quando chegou no “Amém”, saravá nóis tudo, vestes dilaceradas, estava peladinha. Correu para o largo da igrejinha coberta pelo manto da imagem em tamanho natural de Nossa Senhora, maior relíquia do templo. Foi ali que ela se lembrou do refrão que a mãe ensinara dizer para se deitar: “Com Deus me deito; com Deus me levanto; Nossa Senhora me cobre com seu manto!”.

Pregado no poste: “Já denunciou um traficante hoje?”

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