Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1999Crônicas

Preconceito

Antigamente, saía briga. “Campineiro é bicha!” Pronto; estava armado o barraco. Há milhões de histórias, de piadas e de justificativas. Essa “onda” foi até capa da Veja, há mais de vinte anos: “Campinas, a fama injusta”. Quando o preconceito era maior, em todo lugar do Brasil se soltava um risinho maroto: “Ah, você é de lá?” Alguns, mais curiosos, esticavam a conversa: “Mas me conta, porque são tantos?”

O jeito era rebater com outras piadas, incluindo a cidade do curioso na história. Existe uma famosa, que usa a região como cenário: “O camarão vem de Santos; passa por Campinas para ficar fresco; por Itu para ficar grande; por Piracicaba para criar chifre…” e assim por diante. Meu querido amigo Cecílio Elias Neto conhece o roteiro completo desse camarão.

Viajando esse país a fora pelo Estadão, o fotógrafo Toninho Erbolato e eu passamos poucas e boas. O carro tinha placas de Campinas e até isso, por incrível que pareça, despertava gozação.

No tempo da ditadura, fazíamos uma reportagem na fronteira com a Argentina — a usina de Itaipu ainda era apenas um desenho no papel — e nos hospedamos num hotel em Foz do Iguaçu, bem na frente do quartel. O sentinela viu a placa do carro, contou para o oficial-de-dia, que contou para o tenente, que contou para o coronel-comandante daquele batalhão.

Os militares, que se julgavam donos do mundo e da verdade, odiavam e perseguiam o jornal, que resistia em nome da liberdade. Resolveram nos humilhar. Fomos chamados ao comando porque eles queriam saber o que estávamos fazendo na cidade. Para intimidar, começou a gozação. O “gorila” de plantão, indigno de usar uma farda, chamou o resto da guarnição: “Venham ver! Vocês não querem conhecer? Há dois campineiros aqui! Eles são daquela gente que difama o Brasil no exterior”. Não estávamos entendendo nada.

Ele abriu uma pasta do “serviço de informações” e nos mostrou adesivos que circulavam em carros argentinos e paraguaios, de passagem por Foz do Iguaçu. O desenho mostrava uma mulher nua deitada sob uma árvore, diante de um homem em pé, escondendo suas “vergonhas” e dizendo: “No puedo; soy de Campinas, Brasil!”

                Como responder? Qualquer reação, seríamos fuzilados e jogados no rio. De volta a Campinas, mandei uma carta para aquele “militar”:

“Desprezível coronel. Sou aquele repórter campineiro do Estadão, que o senhor e os iguais de seu bando pensaram ter humilhado numa dependência do Exército brasileiro. Seu preconceito doentio visa atingir minha cidade e sua gente, como uma forma de intimidar, também, meu jornal, que deixa vermes de sua espécie, ainda desclassificada pela ciência, enfurecidos diante da verdade. O senhor acusa Campinas e campineiros de difamar o Brasil no Exterior. O senhor é um ignorante e, claro, não conhece minha terra. Fosse inteligente, ao menos humano, não estaria a serviço desse regime de assassinos coonestado por políticos repugnantes. Por favor, me aponte um, apenas um, campineiro (fora da política) que algum dia na história desta cidade tenha desonrado o Brasil. Não se preocupe em descobrir; não vai achar. Agora, procure saber o que o mundo civilizado pensa da sua conduta e da de seus iguais perante a Nação e o senhor descobrirá quem difama o Brasil no exterior”.    

Essa carta tem mais de um quarto de século. Como escrevi a um assassino, creio que ela se extraviou. Se tivesse chegado, eu não estaria vivo.

 

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