Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2002Crônicas

Palco iluminado

Dez entre dez histórias contadas pelos ex-alunos do “Culto à Ciência”, para comemorar os 125 anos da escola, fazem referência às Lojas Americanas, primeiro templo consumista da cidade, ali na Treze de Maio, no largo do extinto Teatro Municipal, atrás da Matriz que ficava na frente do majestoso Alecrim. Está perdido? Na frente da loja, na Rua Costa Aguiar, ficava o restaurante “Marreco”, do seo Gegero, ex-prefeito, ao lado das Casas Regente. Depois que puseram o teatro no chão, ergueram a loja Sears, imponente… Ainda na Treze, esse templo era vizinho das Casas Pernambucanas e na frente passava o bonde “9”, que vinha do “Culto” lotado de estudantes. Está difícil se localizar, não é? Acho que o “Marreco” já se foi; a Sears fechou; demoliram o teatro; assassinaram o Alecrim e acabaram com o bonde — até os trilhos arrancaram. Por causa de um ladrão, soube que a “Americana” está lá (ainda).

Essa loja resiste ali há quase 60 anos. Foi o primeiro quartel-general dos jovens da cidade. Berço da primeira lanchonete, serviu a primeira Coca-Cola, os primeiros hambúrgueres, milksahakes, hot dogs, wafles, marshmellows, a primeira banana split e trouxe a Kibon e seus sorvetes para Campinas. Pioneira do self service, vendia de tudo: de discos das paradas de sucesso a livros, brinquedos e ferramentas. Ponto de referência do centro: ir à cidade e não passar pela “Americana” era como não ter saído de casa. Sair do colégio e não tomar ao menos uma Coca ou um sundae, na mesinha ou no balcão, era como não ter ido à aula. Tá com saudade, né?

Não só a lanchonete e a discoteca atraíam. As garotas balconistas eram um espetáculo à parte. Meninas bonitas, atenciosas, foram alvo de muitas paqueras – flertes – como diziam naqueles tempos dos primeiros acordes do rock, do twist e da bossa nova. Um palco iluminado, mesmo.

Por ser assim, luminosa, aquela loja fundada por americanos encantados com o Brasil despertava a cobiça, o consumo, a vontade de levar tudo pra casa. Os brasileiros ainda não estavam acostumados a pegar a mercadoria, apalpá-la, escolher em meio a uma profusão de ofertas, sem interferência do vendedor. Um momento de fraqueza e… pronto. As histórias de furtos ali dariam um livro. Conheço um ex-alto funcionário dessa loja, já aposentado há muitos anos, que foi pego furtando um brinquedo, quando era garoto. Para “pagar”, foi obrigado a lavar os banheiros dos empregados. No dia seguinte, voltou para pedir emprego (oferta do gerente) e nunca mais saiu. Fez carreira. Certa vez, o mesmo gerente foi procurado por um senhor muito distinto: “Tenho um irmão cleptomaníaco. Ele é fascinado por esta loja. Por favor, se o virem furtando algo, não o detenham nem chamem a polícia. Relacionem tudo e mandem a conta para mim. Nós pagamos tudo o que ele levar.” Outro menino flagrado com a “boca na botija” foi levado até em casa pelo gerente. Além de tomar uns petelecos da mãe, teve de se desculpar. O gerente ainda ouviu elogios de agradecimento dos pais daquele “menor infrator”.

Agora, há denúncias de lojas que mantêm até cárceres privados. Os tempos são outros, os empresários são outros, as lojas são outras, a delinqüência é outra e a cidade é outra. Só essa loja, parece, continua a mesma. Pelo menos em Campinas, onde um foragido da cadeia, louco para voltar ao xadrez, escolheu justo a “Americana” para roubar e justificar sua nova prisão. É. Os tempos são outros. Até essa história inacreditável acontece em Campinas, uma cidade que também era outra.

Pregado no poste: “Mineiro compra bonde; campineiro, rinoceronte”

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