Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2011Crônicas

Nossas naves

Fragmentos de saudade. São recordações de nós, molecas e moleques, falando sobre nossos carros favoritos:

No começo, um bonde se chamava Saudade. Hoje, todos são da linha ‘Saudade’. Campinas era a única cidade do mundo que tinha um bonde chamado Saudade, décimo primeiro verso de um soneto. Quer saber? Para nós, Campinas era a única cidade do mundo; nossa escola, a única; nossos professores, os melhores. Até hoje.

Uma foto do ‘9’ corre de mão e mão e Lady Blaya exclama: “O meu bonde!”

“De Paula, que coisa incrível! Andei muito de bonde, mas muito mesmo. Muitas vezes no ‘9’. Na saída do colégio, eu ia com a turma da bagunça até a loja Constanze. Almoçava na casa de uma amiga que morava num edifício bem na esquina da Glicério com General Osório, e depois do almoço, a mãe dela, que tinha uma pequena indústria de colchões, nos trazia até minha casa. Acredita que nunca reparei no freio do bonde? Não era no assoalho? Nem na bitola, nas sapatas, reostato de velocidade, coluna, manivela. Nossa! Que truque é esse?”

“Lady, truque é a montagem sob os vagões de trem; geralmente são dois, um em cada ponta do vagão e cada um com quatro rodas. Nossos bondes não tinham truques. As rodas eram duas de cada lado, fixas e bem próximas do centro do carro. A vantagem das rodas próximas é que as curvas bem fechadas, das ruas estreitas da nossa cidade, podiam ser feitas sem problema. A desvantagem estava no balanço lateral, o que não deixava correr. Comum, também, era o coletor de energia (aquele arco que deslizava pelo fio, no teto do carro) sair muito de lado e soltar o contato com o fio: era o maior estouro da chave geral, bem em cima da cabeça do motorneiro. Havia ainda a caixa de areia, debaixo do primeiro banco, que tinha o encosto fixo. Essa areia era jogada manualmente nos trilhos, quando, por causa da chuva, as rodas deslizavam nos trilhos e perdiam a aderência. Também porque a molecada passava sabão ou enchia os trilhos de tampinhas de refrigerante…”.

Lembro-me bem de que todos os bancos estavam sempre  voltados para a mesma direção. Quem viajava neles via o percurso de frente. Com exceção do primeiro, virado ao contrário, onde se sentavam os ‘meninos’, que só andavam de bonde para paquerar as meninas. A gente ficava o tempo todo sem olhar para eles, com cara de paisagem. Às vezes, a amiga ao lado nos cutucava: ‘Pode olhar agora, ele não está olhando…’. Alguns puxavam a cordinha a toda hora, para o bonde parar — e não descia ninguém. O motorneiro esperava um pouco, todo mundo mudo, e depois voltava a andar. Todo mundo ria, menos os adultos. Tempinho bom!”

Pregado no poste: “Bonde não tinha reversor nem caixa preta; não eram da Tam, mas da Cometam…”

 

 

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