Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1997Crônicas

Nem a morte os separa

Como canta a Rita Lee: “Acenderam as luzes, cruzes!”

E as cruzes apareceram na noite do cemitério Parque Gramado, bem na divisa de Americana com Santa Bárbara d’Oeste, terra dos ancestrais da nossa roqueira mor. A Rita não cantou o que apareceu quando acenderam as luzes “no escurinho do cinema”, mas o seu Cícero dos Santos, administrador do cemitério, contou coisas do outro mundo para o Rogério Verzignasse, quando iluminou o “campo santo” da cidade. Descobriu logo que aquele campo não é tão “santo” assim e que o respeito aos mortos já morreu.

Acabou o espaço em Americana. Sobrou a Praia Azul, nem terreno baldio existe mais. Os famosos “matinhos”, que toda cidade tem, Americana já não tem. E agora? “Os motéis agora estão superlotados, a meninada anda a todo vapor”, cantam as Frenéticas. Sem terreno baldio, “matinho” nem motéis baratos, o jeito é procurar o último reduto para amar, junto aos que já morreram, de amor ou não.

Imagine esta cena descrita pelo seu Cícero: “Em certos casos, a gente nem chamava a polícia, pois muitos homens e mulheres escolhiam o cemitério para encontros extraconjugais. Eles se desesperavam com o flagrante e pediam de joelhos que a ocorrência não fosse registrada.” Ajoelhados, nus, de mãos postas, implorando a cumplicidade e a omissão do guarda-defuntos. Será que ele respondeu: “Fiquem tranqüilos, minha boca também é um túmulo”?

Certamente, são casais sem parentes enterrados ali. Afinal, o seguro também morreu — de velho — e quem trai não quer nem os mortos por testemunha. São homens e mulheres que confiam piamente na mensagem de Cristo: “Cuidado com os vivos, que dos mortos cuido eu”. Sendo assim, não há ninguém com quem se preocupar… no cemitério. Mesmo que ali, o “espetáculo” seja exibido no palco dos que já partiram, para uma platéia de 14 mil cadáveres, todos impedidos de aplaudir ou censurar, a não ser em silêncio. Cine “privé”, explícito, ao vivo, de graça, em pleno cemitério, num show de levantar defuntos. Alguns inventaram até um macabro “amor interativo”, fazendo de alcova, uma cova aberta, forrada por um lençol de flores murchas. Só no Brasil.

(“Cuidado com o que você escreve. Não brinque com a morte nem com os mortos. Ela e eles não vão dar mais sossego a você”, alertou o jornalista Oscar Ramos Gaspar, o peregrino dos cerrados, lendo esta crônica às minhas costas. Quem está brincando com a morte e com os mortos são esses novos freqüentadores de cemitérios, que descobriram um lugar para profanar, nem tanto com o amor que fazem, mas com as drogas vendidas entre sepulturas, transformadas em balcões da… morte. E a polícia não sabe de nada? Acredito.)

O que me preocupa mais é que muitos ficaram lugar de se amar. Em noite fria, chuva, sereno, luar ou não, para eles qualquer hora era hora. Já que falamos em Rita Lee e nas Frenéticas, terminamos in memoriam a dois cantores sempre queridos e inesquecíveis, Alvarenga e Ranchinho, que cantavam: “Eram duas caveiras que se amavam e à meia-noite, se encontravam…“. E agora? Onde elas se encontrarão?

         PS: O Movimento Tortura Nunca Mais não vai protestar contra os torturadores daqueles fazendeiros do Paraná? Política, no Brasil, seu nome é hipocrisia.

 

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