Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2002

Mate, mas não trabalhe

Aquele grandioso estadista patrício, de nome Paulo Salim Maluf, deu um conselho aos estupradores brasileiros, talvez na ânsia de conquistar seus votos, sem ferir a sensibilidade das vítimas nem perder os votos delas: “Tem desejo sexual? Estupra, mas não mata!”. Para os bandidos, uma festa: “Se esse cara for presidente ou governador, é só não matar, que fica tudo limpo. Vamos votar nele, pessoal!”. Para as mulheres, resta a resignação estarrecedora: “Se esse cara for governador ou presidente, é bom não sair mais de casa ou procurar a Unicamp, para ver se eles transformam toda mulher em homem…”.
Nesta terra, para se ganhar um voto vale tudo, até estuprar a urna. Ou a consciência. Tudo depende do preço de cada uma.
Pensei naquele estadista, vagando ontem por um shopping center e por um supermercado. O que me chamou a atenção foi a seção de brinquedos. Nas gôndolas, há produtos capazes de fascinar bebês ainda no ventre da mãe. Verdadeiro palco iluminado no paraíso do consumo. A meninada delira, para desespero do bolso dos pais e esgotamento da paciência das mães. Se um deles fala “hoje, não”, o paraíso vira um inferno e arma-se o circo dos berreiros.
Bonecas que falam, andam, comem, bebem, dormem, choram, fazem xixi; bolas de futebol, vôlei, basquete, handebol, golfe, tênis, ping-pong, gude, bilhar, futebol de salão; jogos de mesa, praia, campo, armar, salão, salinha, saleta; bichos de pano, plástico, pelúcia, acrílico, veludo, felpudos; brinquedos de empurrar, arrastar, chutar, puxar, derrubar, socar; e uma parafernália eletrônica e a pilha, que me deu saudade dos tempos dos carrinhos de corda e de fricção, dos ioiôs, piões, bilboquês, diabolôs – estes sumiram; bambolês ainda resistem. Duvido que alguma indústria de brinquedos consiga fazer ioiôs, piões, bilboquês, diabolôs ou bambolês movidos à pilha ou controle remoto. Seriam os brinquedos mais sem-graça do mundo.
Em meio aos brinquedos, mas por incrível que pareça, também na seção dos brinquedos, revólveres de todos os calibres, metralhadoras, fuzis, granadas, lança-chamas, flechas, pistolas, foguetes, espingardas, espadas, punhais, adagas, escudos, capacetes – um arsenal de fazer inveja a Adolf Hitler, quando decidiu mandar garotos lutar na guerra. Um espetáculo de cinismo: numa das embalagens, a (juro por Deus) “recomendação: para maiores de três (!) anos”. (A exclamação é minha, o cinismo só pode ser do fabricante.).
Como é que pode? Uma instituição mobiliza o País na louvável campanha de combate ao trabalho infantil nas plantações de sisal, amendoim, cana-de-açúcar, laranja, nas carvoarias e nas pedreiras. Mas é a mesma instituição que reúne alguns dos fabricantes desses brinquedos em forma de armamentos. Aquela entidade que denuncia a exploração do menor fabrica armas de brinquedo para crianças. Imitações perfeitas, tão perfeitas que são usadas por bandidos em assaltos, porque enganam suas vítimas e os livram de uma pena maior porque, afinal, não estavam “armados”.
Quer dizer: criança trabalhar não pode (e não pode, mesmo), mas aprender a matar desde nascença pode, né? O que separa a intenção da ação tem nome: lucro.
Pregado no poste: “Hipocrisia, filha da demagogia”

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