Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1997Crônicas

Já matou um campineiro hoje?

— Alô, Zina, tudo bem por aí?

— Hoje está calmo, só vinte roubos de carros a mão-armada, dois estupros e, graças a Deus, nenhum homicídio até agora. São sete da noite; vamos ver se não assassinam ninguém até à meia-noite. Até que está tranqüilo, hoje…

— É verdade essa história de 300 assassinatos só neste ano?

— Até ontem, 301.

Parece conversa na porta do inferno, né? Nada disso. Zina é a nossa chefe-de-reportagem aqui do Correio, conversando comigo por telefone e falando com a maior naturalidade sobre a morte violenta de 301 pessoas em Campinas. Pensei comigo, quando ela falou dos 301: “Aqui na fronteira com o Paraguai, há uma máfia de pistoleiros ligada à polícia que matou ‘só’ 286 — mas em dois anos e meio”.

O caso mobilizou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Um bando de deputados esteve aqui, prometendo fazer e acontecer. Tudo político; não vão fazer nada. Conversa mole para caçar votos em cima da tragédia social, que ajudam a promover dia a dia, porque vivem dela. Já viu urubu viver sem carniça? Só que o urubu acaba com a carniça. Não é ele quem mata, mas é ele quem limpa. Têm muito valor para a sociedade — os urubus. Eles são indispensáveis. Vou votar neles.

Como se vive em Campinas, sabendo que todo dia matam um na cidade? Como é acordar de manhã e sentir-se pino de jogo de boliche? “Será que hoje a bola do destino me derruba? Onde a bala vai pegar: no coração, na cabeça ou na espinha?”.

Uma das cidades mais dignas do mundo está se desmanchando. Nela matam um morador por dia. O tráfico de drogas já administra bairros inteiros, dividindo o poder com o prefeito e vereadores. Quero ver alguma autoridade ter coragem de entrar num bairro desses, sem ordem do “chefe” ou sem negociar com ele. Autoridades… Pois sim! Enquanto isso, quem as sustenta vai morrendo assassinado. Dia chegará em que eles não terão a quem pedir votos nem a quem prometer “segurança”. Nem quem os sustente. Vão se devorar?

E a cidade vai desaparecendo (ou apodrecendo?) de fora pra dentro e, agora, de dentro pra fora. Campineiros já cortam a própria carne, para sobreviver até onde suportam. Nesta terra, o cidadão oferece partes do corpo no mercado aberto para continuar vivo. Por enquanto, um rim vale um fio de esperança para enfrentar uma dívida de R$ 250 mil. Como a legião de desgraçados cresce sem parar, a oferta será maior do que a procura e um rim não valerá dez tostões de mel coado. Ou menos do que uma peça de rim de vaca no açougue da esquina ou numa banca fedida da feira.

Dia desses, numa rara demonstração de eficiência, conseguiram prender um ladrão. Não era um perigoso facínora, desses de colarinho branco, que mandam matar por encomenda; de botinas amarelas, que roubam milhões, ou sem colarinho e descamisado, de quem roubaram o direito à educação. Foi um pobre coitado, que surrupiou um pedaço de queijo de um supermercado, para dar de comer aos filhos. Roubo avaliado em R$ 15,00. Esse eles conseguem prender. Afinal, é um anônimo miserável que não faz mal nenhum a ninguém. Um pedaço de queijo: mas se fosse um rato — ou uma ratazana — com ou sem colarinho, nem seria molestado.

Desculpem a amargura, mas dói ver minha cidade entregue aos bandidos.

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