Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1998Crônicas

Essa é do barulho

Houve um tempo em que o homem mais barulhento de Campinas era o Florêncio. Todos os campineiros ouviam o barulho que ele espalhava pela cidade, mas ninguém sabia que a “arte” era dele. Um artista, o Florêncio. O som do Florêncio regia nossa vida (insisto em repetir tanto o nome dele porque esse é o único Florêncio que conheci até hoje).

Florêncio e padre Karam — uma dupla do barulho no centro de Campinas: o cônego vigiando as badaladas do relógio da Catedral e o nosso “homem-alarme” disparando a sirene do Correio Popular. Florêncio&Karam davam o show deles para avisar a hora de acordar para o trabalho, almoçar e encerrar a jornada. O Florêncio ia mais longe: tocava a sirene para anunciar o início e o fim da eleição ou em momentos solenes, como a morte de personagens ilustres. (Quantos papas você já “matou” Florêncio?).

Nas horas vagas, em silêncio, como até hoje, ele subia e descia pelos andares do prédio do jornal, na Rua da Conceição, levando visitas, repórteres, diretores, convidados, autoridades e toda a gente da comunidade que precisa do Correio para reclamar, elogiar, comunicar fatos, denunciar ou anunciar. Você, que já esteve lá, vai ficar sabendo, agora, que o Florêncio é o nosso ascensorista, desde os tempos em que aquele elevador tinha porta pantográfica (aquela, de gradinha) e manivela. Manivela! Os tempos mudaram, o elevador já é automático, se não me engano, mas parece não andar sem ele. E o nosso Florêncio continua o homem cordial de sempre, sorridente, educado, brincalhão e um grande imitador. Satírico, até.  Jamais vi essa afável figura anônima da vida de Campinas de cara amarrada.

Além do Florêncio, muita gente fazia barulho na cidade. Os bombeiros; as ambulâncias do Samdu (Puts! Você se lembra delas?); a sirene da fábrica de elásticos, na Rua José Paulino; o apito da fábrica de Chapéus Cury, na Barão Geraldo de Resende; a rádio-patrulha; os camelôs, os peixeiros e o homem do realejo no Mercadão; o Renato Righeto apitando jogo de basquete e o Giardini, de futebol de salão (inconfundíveis); as machadadas e as serras elétricas contra as árvores que teimam em nascer no Largo da Catedral; as locomotivas da Paulista e da Mogiana; os acordes da Ave Maria com o padre Geraldo, na Rádio Cultura; os vendedores de biju; os soldadores de panela; os tripeiros da Vila Industrial; o sino dobrando triste pela dor da perda no Cemitério da Saudade; seo Armando, o verdureiro, com sua buzina e sua carroça verde; a perua da granja da Vila Brandina chegando com o leite; o Nico do Pão de Ouro, quando ainda vendia pão de Lambretta…

Campinas tinha uma orquestra afinada. Mesmo de olhos fechados, ninguém se perdia na cidade. Cada barulho em seu lugar, cada barulho tinha sua hora.

Agora, anda tudo desafinado. Perdeu a graça. Depois da irritante “Pour Elise”, tocada pelos caminhões de gás, há um barulho novo, segundo contou a repórter Maria Teresa Costa (ela não dá sossego para os medíocres): “Sem homens e viaturas em número suficiente parta garantir a segurança da cidade, a Polícia Militar decidiu inovar: colocou um carro de som nas ruas para alertar a população sobre medidas de segurança que deve tomar. Uma kombi, acompanhada de uma viatura, circulou sábado à noite pelos principais points da cidade avisando as pessoas para que não saíssem de casa, levando dinheiro e jóias…”.

Pregado no poste: “Durma-se com uma polícia dessas”

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