Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2005Crônicas

Ele sabia…

Ele morava ali pelos lados do Bosque, pertinho da casa do seo Vignatti, cobrador de bonde e um dos seres humanos mais bonitos que viveu em Campinas. Era médico-anestesista aposentado e de apelido “Noventa”, desde menino, porque jurava passar dos 90 na vida. Passou e passou bastante.

Uma figura o Doutor Noventa. Já bem pra lá dos 70, um dia, perto de encerrar as atividades médico-hospitalares, assaltou a maravilhosa coleção de tangos da esposa, ás do basquete no Regatas, e presenteou todas as enfermeiras do hospital – um festival de Gardel, Piazzola, Lepera e, claro, Ângela Maria, João Dias. Nersão e Francisco Alves. Coleção de deliciar o nosso Ari B. Pontes, sucessor de Orestes Quércia na “Boate do Tango”, nas madrugadas da Rádio Cultura. A vingança da esposa não poderia ser melhor: vendeu a rádio-vitrola, daquelas de marfim com gabinete em imbuia. Era erguer a tampa e o toca-discos aparecer. Linda! Lembra?

Ciúme? Que nada! Ali, um não vivia sem o outro. Tanto que certo dia ela o flagrou acendendo um incenso e uma vela ao lado da imagem de Santo Antônio, rezando e pedindo a Deus: “Meu Pai Eterno, conserve a Lúcia, assim, forte, brava e saudável, para que ela possa cuidar de mim bem depois dos 90”. Deus ouviu aquelas preces, posto que estão juntos até hoje. Como é que pode? Mais de noventa, dentição original, e come pé-de-moleque como moleque! E ela? Noventa e seis, assenta tijolo, cola taco, pinta parede, sobe escada, pendura vaso e não deixa ninguém ajudar. Conta que sua diversão favorita, quando ainda guria e morava em São Paulo, era ver o fim da construção da Estação da Luz. Já pensou? Essa é testemunha ocular da história, mesmo. O pai era engenheiro da São Paulo Railway, depois Santos a Jundiaí.

O anestesista Doutor Noventa anestesiou o tempo.

Quando chegou aos 97, o filho mais velho, de 78 no lombo, morreu. Na missa do Sétimo Dia, firmes, ao pé do altar, pai, mãe e os dois irmãos mais novos, com 70 e 66. A viúva chorava mais do que cunhados, netos, sogra e sogro.

Na hora dos pêsames, ele arrematou:

— Sabia que esse moleque não ia vingar…

Pregado no poste: “Não  — povo deus as costas para o Mensalulla e para a TV Globo”

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