Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2010Crônicas

Durma em casa

Há quarenta anos, era tudo na mão: 5 X 1 — cinco dedos e um lápis, para resumir o dia a dia de uma casa, apartamento, barraco, xilindró, cortiço, mansão, quarto de hotel ou de pensão. Debaixo da ponte, da rua ou atrás do campo da Ponte ainda não morava ninguém. Mas atrás do estádio do Guarani, morava. Tanto que foi para ali que me escalaram para participar do recenseamento de 1970. Ninguém duvidava de ninguém naquela Campinas gentil (só dos políticos, como sempre), por isso, não precisávamos de jaqueta – bastavam crachá e pastinha de formulários.

Povo bem informado, sabia que a qualquer hora um recenseador chegaria: “Oh, que prazer! Vamos entrar! Sente-se, por favor. Um café, um suco? E então, como é esse trabalho?”. Pelo menos os moradores das redondezas do Brinco de Ouro eram assim. Não houve caso de ninguém maltratado. Mas “causos”, vimos e ouvimos muitos para contar — ou calar para sempre.

Pergunta primordial, para não haver dupla contagem: “Quantas pessoas dormiram nesta casa do dia 31 de agosto para 1º de setembro”. Se naquela noite alguém estivesse viajando, seria recenseado onde dormiu: casa de parente, cadeia, hotéis, quartéis, bordéis (não existiam motéis). Dúvida até hoje não resolvida: e quem estivesse à bordo de ônibus, trem, navio ou avião? Ou em trabalho noturno, nas padarias, hospitais, estações de rádio e TV, redações de jornal? Guarda noturno e inspetor de quarteirão foram recenseados?

Depois, era preciso saber os nomes de todos os moradores, renda familiar, profissão, estado civil, religião e escolaridade de cada um. Para avaliar o ‘status’ do brasileiro, os indicadores eram eletrodomésticos, carro e ano de fabricação e número de cômodos da residência. Cor da pele, não. Nem “opção sexual”. Para evitar constrangimento ou euforia, não era necessário dizer o nome do time do coração.

Até que houve situações curiosas. Vamos lá:

“Meu sogro dormiu aqui naquela noite, mas morreu dois depois; ele conta ou não?”

“O Junior nasceu no dia 1º: eu entro aqui ou na Casa de Saúde? E ele, coitadinho? Só vai ser gente no censo de 1980? Cruz credo, moço! Mas se ele morrer antes, nunca terá sido gente?”

“Meu marido é viajante e meu primo de Americana… Peraí! O senhor não vai contar que ele dormiu aqui, vai?”

“Sou casado, mas minha mulher não mora comigo. E ela quem sustenta esta casa. Portanto, esse negócio de renda é com ela e o amásio dela.”

Muita sinceridade. Até estranhei. E olha que nenhuma mulher se recusou a revelar a idade!

Pregado no poste: “Depois de certa idade, a mulher não tem idade certa”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *