Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

2002

Descendentes

O humorista José Wasconcellos costumava definir a população da cidade de São Paulo, brincando: “Metade da população de São Paulo descende de italianos; a outra metade é italiana.” Em Campinas, há uns trinta anos, quando a Bosch era a maior empresa da cidade, parafraseando esse grande “Zé”, dizíamos: “Metade da população de Campinas trabalha na Bosch; a outra metade descende de quem trabalha lá”.
Essa comparação me veio à lembrança ao ler a mais triste manchete dos últimos anos, dada em tom de alerta pelo nosso Correio Popular, na primeira página do dia 15: “Tráfico emprega 10 mil pessoas em Campinas”. O José Pedro Martins e o Dario Carvalho Júnior simplesmente nos deram conta de que mais de um por cento da população absoluta da cidade já trabalha exclusivamente para destruir os demais campineiros.
Não sei, hoje, qual é a maior empresa de Campinas, a maior empregadora de seus trabalhadores, mas, sei não, acho que o tráfico de drogas é o maior mercado de trabalho de Campinas, em expansão, enquanto o resto da economia está em retração. Em retração e pagando mal, fechando as portas ou enxugando ao máximo seus quadros de funcionários. Enquanto isso, o comércio das drogas oferece remuneração atraente, compatível com os riscos, sempre precisa de mais gente e diversifica seus produtos — cocaína, crack, maconha, heroína, skank, ecstasy, LSD. Um para gosto.
Chegam ao requinte de fazer previsões de mercado, como as da “guerra das cervejas”. Já se especula, por exemplo, que em 1998, a heroína tomará o lugar da cocaína e da maconha na preferência dos consumidores. Vamos ver, até o ano que vem, qual será a droga “número um”, a que “tem gosto de festa”, a “paixão nacional”, a que tem “o sabor do sucesso”, a que “agrada ao mais fino paladar” (ou olfato?) ou a que pergunta: “Dá para dar uma cheiradinha, antes?” Uma propaganda que nem precisa ser criativa para concorrer com campanhas de produtos honestos. Mesmo porque, já temos autoridades com tamanha “desonestidade de propósito”, que defendem a venda livre de drogas em gôndolas de supermercados. (A defesa é tão apaixonada, que dá pra desconfiar se esses inúteis não são financiados).
Em Campinas, o tráfico emprega dez mil pessoas (pessoas?). Só na cidade de São Paulo, são 50 mil, espalhados por cinco mil filiais (as autoridades só conhecem as filiais, porque a matriz, parece, não têm coragem, talvez nem interesse, em combater).
Afinal, apenas na Capital do Estado, a droga é um negócio que movimenta R$ 1 milhão por dia — dinheiro capaz de corromper não só o mal pago guarda da esquina — as denúncias de policiais envolvidos com o tráfico são cada vez mais freqüentes, mas será que só soldados estão nessa? Os números do IBGE também nos levam a outra constatação espantosa: o contingente de empregados pelo tráfico (só na cidade de São Paulo) é maior do que a população de 539 dos 645 municípios paulistas.
Do jeito que essa atividade econômica se desenvolve, impulsionada pela incompetência explícita, talvez deliberada, das autoridades brasileiras, sinto um frio na espinha. Será que viveremos o dia em que vão dizer “metade da população de Campinas é traficante de drogas e a outra metade descende deles”? Aí, essa comparação não será uma piada e, em vez de rir, vamos chorar. Deus nos livre, dos traficantes e de certas autoridades.
 

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