Moacyr Castro

Crônicas, reportagens e entrevistas.

1999Crônicas

Artigo 15

Quando ele chegou — e isso tem quase trinta anos –, era vermelho e ganhou o apelido de “orelhão”. Agora que mudou de dono, só pode ser um “orelhudo”. Nem sei que cor tem — deve ser cor de burro quando foge… Era novidade. Beto Godoy escrachou na primeira página do Correio: “Os vermelhos estão chegando”. No quartel do Quinto G-Can, os milicos já pensaram numa invasão de comunistas. Paranóia.

Antes do “orelhão” da Telesp, nos tempos da CTB (outra droga), telefone público era o da padaria do bairro, do bar da esquina, da farmácia, do vizinho. Qualquer um que passasse na rua, precisando, pedia: “Dona, posso usar seu telefone um minutinho?”. Muita amizade entre desconhecidos nasceu assim. Nem adiantava vir com a desculpa de que não havia telefone em casa. O fio que varava a janela e ia até o poste de luz — aqueles postes de ferro, ainda — denunciava: “Aí tem telefone.”.

Ninguém recusava. Até se oferecia um cafezinho para o ilustre “pidão”. Quanta educação! A dona da casa saía da sala para não bisbilhotar a conversa. Mas que dava vontade, isso dava… O telefone era preto, da Standard Eletric, tinha um selo azul no meio do disco, com o número do aparelho do assinante e, quer saber mais?, “telefone” se escrevia “telephone”. E fazia “trrrrriiiimmmm…”. Não se pagava impulso pelas ligações locais — portanto, podia-se falar à vontade. Namorados? Era difícil que os dois tivessem telefone. E no fim de cada mês, o cobrador da CTB, pastinha debaixo do braço, vinha trazer a conta em casa, paga a ele no portão. Você acredita?

Linha cruzada era uma festa. Se sabia das fofocas de todo mundo. Cidade pequena, um perigo.

Ora pregado na parede ora numa mesinha, só para ele e a lista — uma lista só, mas com tudo, por nome, sobrenome, endereço e as páginas amarelas. Tão pequena, que o ator e diretor Anselmo Duarte até conseguiu decorar uma lista inteira para responder, numa chanchada, que ele mesmo dirigiu: “Absolutamente certo!”. (Filme plagiado pelos americanos — sempre eles — anos atrás, né Anselmo?).

Interurbano? Um martírio, como hoje. Para São Paulo? ‘01’ e uma espera de seis horas. Para o Rio? “Só amanhã”. Coitadas das telefonistas. Incêndio? 3333. Rádio-patrulha? 8899. Ambulância? 2222. Telefone pedindo bis, na Educadora? 4759. Disque sua música, com o Zé Sidney, na Brasil? 5570. Hora certa na estação da Paulista? 3438. Táxi do Mercadão? 3317. Lojas Americanas? 3640. Farmácia do Carmo? 1613. Iapfesp? 3015. Bar do Kana Higa? 3262.

Era um purgatório. Agora é um purgante. Duvida? Pergunte ao funileiro Cláudio Cerutti, lá do Jardim Boa Esperança. Quando ligam para a oficina dele, o que toca é um orelhão do bairro. Fizeram um “15” para o pobre do Cláudio. Sabe do que trata justamente o Artigo “15” do Código Civil? Veja só: “As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis pelos atos de seus representantes contra terceiros.” Coincidência? Claro, não é uma instituição pública, mas se parece com uma privada e presta um serviço público que parece uma privada pública. Se todas as concessionárias se juntarem, o prefixo será um só: 171…

Pregado no poste: “Alô. É engano. Aqui não tem telefone!”

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